Prática é crime e o número de processos é considerado aquém da realidade por especialistas devido à falta de dados e aos sentimentos de culpa e de medo das vítimas, que desistem de denunciar.
O Brasil registrou ao menos 5.271 processos judiciais envolvendo o registro e a divulgação de imagens íntimas sem consentimento. Eles foram abertos entre janeiro de 2019 e julho de 2022.
A média é de 4 registros por dia, sendo que o estado com o maior número de casos é em Minas Gerais (18,8%), seguido de Mato Grosso (10,93%) e Rio Grande do Sul (10,17%).
É o que aponta um levantamento feito a partir de informações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da consulta aos Tribunais de Justiça dos estados.
São processos que se baseiam em duas leis criadas em 2018:
- lei Rose Leonel (13.772/18), considera crime o “registro não autorizado da intimidade sexual“; punição é seis meses a 1 ano de detenção;
- lei 13.718/18: criminaliza a “divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, sexo ou pornografia sem consentimento“, inclusive o compartilhamento; a pena varia de 1 a 5 anos de reclusão.
Especialistas dizem que não se sabe o tamanho do problema no Brasil. Muitos dados ainda são desconhecidos: o CNJ não tem informações do Rio de Janeiro e outros 5 estados em relação aos processos que envolvem uma das leis, por exemplo. Procuramos os TJs desses estados e também não obteve os dados (leia mais ao fim da reportagem).
Outros fatores que contribuem para o “apagão”, segundo especialistas, são o medo das vítimas de denunciar e o fato de que práticas como divulgar nudes e cenas de sexo sem consentimento só receberam legislação específica no Código Penal em dezembro de 2018.
Culpa, medo e pouca informação
Boletins de ocorrência registrados no Rio de Janeiro entre 2019 e 2022, relacionados ao registro de imagens íntimas sem autorização, citam que, de 194 vítimas, 67% delas eram próximas dos agressores.
A lei 13.718/18, que criminaliza a divulgação dessas imagens, prevê agravamento da pena de 1 a 5 anos de prisão se o autor mantém ou manteve relação íntima de afeto com a vítima ou se o ato for por vingança ou humilhação. É o que acontece na chamada “pornografia de vingança”.
Mulheres são a maioria dos alvos. Em São Paulo, por exemplo, elas foram 87% das vítimas citadas em boletins de ocorrência no estado envolvendo o registro de imagens íntimas sem autorização.
Mas, segundo especialistas, esses casos raramente chegam à Justiça por conta do constrangimento e do risco que a denúncia traz para a mulher, dizem os entrevistados.
“As vítimas que passam pela pornografia de vingança acreditam que colaboraram para que aquilo pudesse acontecer. A mulher vem acompanhada da culpa”, explica a advogada Mariana Tripode, que é especialista em direitos das mulheres.
Além disso, existe uma dificuldade da percepção de quem é alvo dessa prática: “Muitas vezes, ela também nem está informada ou tem consciência de que aquilo é um crime”, afirma a advogada Juliana Cunha.
A subnotificação dos casos contribui para que a sociedade desconheça o tamanho do problema e aja para solucioná-lo, aponta a especialista.
“Isso não é uma questão de ativistas ou de grupos ou de feministas. Isso é um problema real que atinge muitas pessoas, mas que, por não ter tantos dados robustos, acaba dificultando que as pessoas entendam”, afirma Juliana.
Em entrevistas vítimas desses atos, entre elas a jornalista Rose Leonel, que inspirou a lei que leva seu nome. Após o fim do relacionamento, o ex-namorado dela se vingou com a divulgação de diversas imagens íntimas. Ela perdeu o emprego e teve de se separar do filho, ridicularizado pelo vazamento.
O tema acabou sendo mais conhecido após alguns casos, como o de Rose, virem a público. Inclusive alguns em que, desesperadas, as vítimas cometeram suicídio.
Foi o que aconteceu com Júlia Rebeca, de 17 anos, encontrada morta em seu quarto após ter um vídeo intimo compartilhado na internt, em 2013. Assista à reportagem do Fantástico exibida na época:
Como foi feito o levantamento
O g1 teve dificuldades em obter as informações sobre os processos judiciais envolvendo as duas leis que punem registro e divulgação de imagens íntimas sem consentimento.
Sobre os que citam a lei Rose Leonel, que pune o registro de imagens íntimas sem autorização, o CNJ reúne dados de processos de 20 estados e do Distrito Federal, abertos entre junho de 2021 e julho de 2022. Não há informações de Acre, Alagoas, Amapá, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Roraima.
Para obter dados anteriores, uma vez que a lei começou a vigorar no fim de 2018, e as informações de estados que não constam no relatório do CNJ, consultamos os Tribunais de Justiça de todos os estados.
Mas 18 não responderam, incluindo Acre, Alagoas, Amapá, Rio Grande do Norte e Roraima, cujos dados também não aparecem na lista do CNJ. O TJ-RJ disse que não poderia fazer uma filtragem dos processos pela lei específica para a reportagem.
Em relação aos processos que citam a lei 13.718/18, que pune divulgação de cena de estupro, sexo ou pornografia sem consentimento, o CNJ possui o número de processos abertos de 2019 até julho de 2022, exceto os de Alagoas e de Roraima.
Os dados de boletins de ocorrência de São Paulo e do Rio de Janeiro relacionados a esses crimes foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
