Para matar a saudade da Libertadores: Quando Pelé impôs sua majestade no caldeirão da Bombonera

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Para matar a saudade da Libertadores: Quando Pelé impôs sua majestade no caldeirão da Bombonera
04-07-2020
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Em 1963, o Santos conquistou o bicampeonato continental com uma atuação antológica no temido estádio do Boca Juniors.

No universo futebolístico, poucos temas são tão difíceis de abordar quanto Pelé e aquele Santos. Justamente porque representam uma quase perfeição que não deixa margem de manobra para explorar dramas e adversidades. Aquele Santos era absoluto em seu esplendor futebolístico. E Pelé, bem, uma simples foto de Pelé em campo tem potencial para render um ensaio. Um único drible poderia ser destrinchado em duas horas de cinema. E, de fato, talvez seja melhor recorrer às passagens pontuais e às façanhas isoladas, como o que sucedeu no dia 11 de setembro de 1963, quando Edson Arantes do Nascimento levou a icônica e temida Bombonera a flexionar suas colunas de concreto para reverenciá-lo.

Um dos aspectos mais impressionantes do Santos que entrou para a história do futebol — que, na verdade, escreveu grande parte da história do futebol — é que não consistia apenas em um esquadrão de jogar bola. A equipe da Vila Belmiro tinha uma personalidade imbatível quando precisava enfrentar as maiores adversidades. Se podia ganhar com uma apresentação arrebatadora, simplesmente ganhava. Se apanhava, respondia batendo. E exatamenente assim — jogando, apanhando e revidando — conquistou a Libertadores pela segunda vez, há cerca de 57 anos, diante de um cenário hostil até mesmo para os padrões do bairro de La Boca.

Aquele Santos era uma máquina de vencer. No ano anterior, havia conquistado todos os títulos em disputa — Campeonato Paulista, Copa Brasil, Copa Libertadores e Mundial de Clubes. Contava, também, com sete jogadores que haviam faturado a Copa do Mundo de 1962. O Boca Juniors, no entanto, não encarnava nenhum perro muerto, pois era o atual campeão argentino e trazia em suas fileiras nomes do porte de Marzolini, Rattin e Sanfilippo. Era a quarta edição do torneio, participavam apenas os campeõs nacionais e pela primeira vez uma equipe argentina alcançava a final, o que aumentava o clima de expectativa, gritaria e tensão às margens do Riachuelo, na cancha inaugurada em 1940.

Como campeã, a esquadra santista entrou diretamente na semfinal, onde despachou o velho conhecido Botafogo com um arrebatador 4 a 0 no Maracanã. O caminho dos xeneizes se desenrolou de maneira bem mais pedregosa, precisando eliminar Olimpia e Universidad de Chile na fase de grupos, além do fortíssimo Peñarol do matador Alberto Spencer, já bicampeão, nas semifinais. A primeira partida decisiva aconteceu no Maracanã, terreno bastante conhecido do Santos na época — o maior time do mundo precisava do maior palco do mundo. Como uma lufada na noite carioca, antes de meia hora de jogo os santistas já venciam por 3 a 0, mas a reação do Boca Juniors veio pelos pés de Sanfilippo, que anotou duas vezes e deixou para os argentinos aquela sensação de que sí, se puede. O time azul y oro precisaria vencer em casa para forçar um terceiro jogo, de desempate.

Em entrevista, anos atrás, Pepe comentou que nunca sentiu um ambiente tão bélico quanto aquele dia na Bombonera, com a arquibancada em peso gritando toda forma de palavrões e barbaridades. Ou mesmo racismo explícito, como na recepção à entrada dos brasileiros em campo: “Pelé hijo de puta, macaquito de Brasil!”. Como reflexo do furor da arquibancada, o Boca Juniors pressionou como se não houvesse amanhã e várias vezes parou apenas no arqueiro Gilmar, de espetacular atuação. No começo da segunda etapa, no entanto, Sanfilippo aproveitou falha conjunta e abriu o marcador para os xeneizes. Ídolo e maior artilheiro da história do San Lorenzo, o infalível José Sanfilippo defendeu o Boca Juniors apenas naquela temporada. Era um obcecado pelo gol: marcou os três do time argentino na decisão conta o Santos e se tornou o artilheiro daquela edição, com sete gols.

Qualquer outro time teria sucumbido diante daquele cenário: estádio em combustão, adversário qualificado e jogano duro em uma final de Libertadores. Mas o Santos costumava tomar as rédeas do seu próprio destino e, pouco depois, após um tiro de meta interceptado, Pelé apanhou na frente da área e deu um passe veloz para Coutinho concluir com perfeição. Entre esperneios e devaneios, a partida seguiu, até que faltando cerca de dez minutos para o fim Coutinho recebeu a pelota na esquerda e observou Pelé na meia lua, região que era praticamente seu reino particular. Um drible curto deixou desnorteado o zagueiro brasileiro Orlando, capitão do Boca Juniors que mais tarde seria seu companheiro no Santos, e o arremate seco e violento matou o goleiro. O camisa dez completaria 23 anos semanas após aquele jogo. A comemoração, assim como havia sido a de Coutinho, aconteceu com socos no ar e imprecações contra a arquibancada. Quando o ambiente era hostil, Pelé e o Santos mostravam os dentes.

Que Pelé jogasse uma enormidade, significava apenas o curso natural das coisas. Um gênio, quando junto da bola, costuma fazer dessas coisas. O que realmente espanta é a forma como desarma animicamente a Bombonera. Como se impõe, no âmbito emocional, diante de um caldeirão pronto para ferver a tudo e a todos. Com o jogo ainda empatado, lá pelas tantas Pelé deita-se no chão, com o calção na metade das pernas. Fora rasgado em uma disputa, é o que parece. Causa profunda irritação no estádio ao trocar a peça de roupa ali mesmo, no gramado. Em entrevista ao jornal pagina 12, Sanfilippo garante que foi uma manobra do próprio brasileiro para ganhar tempo. O argentino até discutiu com um colega de equipe. “Rattin o levantava e o ajudava. E eu gritava: ‘deixa, pisa nos tornozelos, assim não joga mais. Lá [no Maracanã] me cagaram a patadas e tu o ajudas'”. Ainda segundo o artilheiro argentino, Pelé apenas o escutava e respondia, em bom castelhano: “Sanfilippo, você é bom jogador, mas é ruim”.

Em disputa na pequena área, Pelé abraça o goleiro Errea, já meio caído, para impedir a rápida reposição. Aproveita e faz um gracejo, dando uns tapinhas na bola. Os argentinos correm para encará-lo e Pelé também se arvoroça. A situação era dramática para o Boca Juniors. Ninguém sabia exatamente o que fazer com aquele cidadão que, como se não bastasse ser o melhor jogador do mundo, fazia questão de se divertir em meio à fumaceira. Como um gaiteiro em meio ao Desembarque na Normandia.

Observando as imagens da partida, com o estádio abarrotado, a impressão é que a qualquer momento a multidão poderia partir para um acerto de contas dentro do campo. E Pelé impunha sua hierarquia das mais diversas maneiras. Em uma época em que não havia cartão, driblava alucinadamente pelo campo, sofrendo as faltas mais atrozes. Não reclamava, bem pelo contrário: encarava e empurrava, sorria e se divertia. Era, sobretudo, canchero, para usar um termo dos próprios castelhanos. Ou, transpondo para os tempos atuais, tinha um “poder mental” absoluto sobre como o jogo deveria transcorrer. Sobre o que se esperava dele, Pelé. É comum, e com razão, dizer que a Bombonera tiembla e assim faz fraquejar as pernas dos adversários. O próprio já Pelé se referiu ao que acontece no estádio do Boca como um “terremoto”. Naquela jornada, no entanto, diante do patrono da camisa dez, foi a vez do próprio templo xeneize fraquejar.

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